Traduzindo

Procurando matérias

sábado, 4 de junho de 2011

São minhas também as saudades da Panair

A Panair foi uma empresa de aviação comercial pioneira no Brasil. Sua história se inicia nos anos 30 do século passado, quando ainda se chamava NYRBA. Foi rapidamente incorporada pela Pan Am e posteriormente nacionalizada. A empresa, ao longo de seus 35 anos de existência, angariou elogios internacionais e comemorou louros incontestáveis. Sua falência foi decretada em 11 de fevereiro de 1965, envolta numa atmosfera de mistérios políticos e supostas dívidas. Um dos dirigentes atuais da empresa que funciona no papel afirma que seu pai, antigo diretor-presidente da Panair, era amigo de JK e sofreu represálias do governo de Castello Branco, a ponto de ter de se exilar na Europa com sua família. O caso da Panair, que é intrigante e misterioso, deixou marcas indeléveis nos seus funcionários, que tinham com a empresa não apenas uma relação empregatícia, mas de amor, tanto que, mesmo quarenta anos depois da falência, se reúnem para comemorar e relembrar as histórias da companhia. Esses funcionários formam uma confraria a que chamam Família Panair e sonham, até hoje, ver a agência voltando à ativa.
Essa é a história da Pan Air. Não faço parte dela... ou pelo menos não fazia, até ouvir pela primeira vez a música “SAUDADE DOS AVIÕES DA PANAIR (CONVERSANDO NUM BAR)” de Milton e Brant. Ao primeiro contato com a música, fiquei apaixonado. Aliás, difícil não se apaixonar pelas músicas interpretadas pelo Milton. Assim que ouvi, sem internet, fui perguntar aos meus pais que empresa era a Pan Air. A resposta obtida foi certeira: ah, era uma companhia aérea grande, todo mundo queria voar nela! Ué, mãe, por que acabou? Sei lá... abriu falência e fechou. Faliu. O imaginário que se formou em torno da empresa é de que era uma companhia promissora, rica e respeitável e que faliu inexplicavelmente.
A impressão que tive quando ouvi a canção pela primeira vez e, depois, nas outras vezes que ouvi é a de que esse saudosismo que reverberava na voz de minha mãe, provavelmente, também reverberava na voz de outras pessoas que viveram aquela época.
Gozada é a literatura. Nunca havia sequer suposto uma agência de nome Pan Air, eu, filho dos fins dos anos 70. Mas a saudade que eu senti quando ouvi “Saudades dos aviões da Pan Air” foi legítima e intensa. Vai entender...
A letra parte do particular para o geral de forma dinâmica e bela. As saudades, antes dos aviões da Pan Air, transformam-se em Saudade, substantivo próprio. Esse ente paradoxalmente “pertencedor” e pertencido. O compositor Fernando Brant, que assina a letra da canção, vai fazendo nostálgicas associações a partir das saudades da Pan Air e da infância. As associações e lembranças supostamente vão surgindo docemente em volta da mesa de um bar, numa conversa de amigos. Lá está o passado: o bonde, o motorneiro, o doce na boca dos moleques, a 2ª Guerra, a primeira Coca-Cola.
Na verdade, a saudade está presente em praticamente todos os álbuns de Milton na época do famoso Clube da Esquina. O passado ecoa em várias canções desse mesmo álbum, como em “Ponta de Areia” e “Paula e Bebeto”. Ou ainda em canções de outros álbuns, como “Clube da Esquina”, “Paixão e Fé” e “Bola de Meia, Bola de Gude”.
Talvez utilizassem a saudade como um recurso de denúncia por meio da evasão do tempo em que viviam, o ano de 1975, anos de chumbo da ditadura e data de lançamento do histórico álbum “Minas”. A dolorosa realidade vivida pelos artistas era violentamente negada e substituída por um passado inocente. Reviver o passado era sobretudo a sua arma contra a dura realidade política do Brasil de então: “Descobri que a minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Pan Air”. E mais: não é por mera coincidência que Brant utiliza a Pan Air como símbolo de um passado brasileiro idealizado. Ele não associa esse passado apenas à sua infância, mas aos anos anteriores à falência da Companhia, a qual se dá um ano depois da “Revolução”.
Independente da questão política suscitada pela contextualização da música – aliás, maravilhosamente arranjada por Wagner Tiso -, o que fica dessa canção é justamente a saudade, essa palavra nossa porque tão portuguesa e tão africanamente reforçada pelo banzo ioruba e ressignificada pelos mineiros na interpretação do grande Milton Nascimento.